Em uma homenagem à arte drag queen, a Cia. Extemporânea apresenta uma versão da tragédia Rei Lear, de William Shakespeare (1564-1616), transportando a complexidade da obra clássica para o universo performático das drags. A montagem, que tem direção de Ines Bushatsky, fará uma nova temporada gratuita no Teatro Arthur Azevedo, de 31 de outubro a 3 de novembro, prometendo uma experiência teatral que vai do cômico ao trágico.
O elenco é formado por um time de drags talentosas, incluindo Alexia Twister, Antonia Pethit, DaCota Monteiro, Ginger Moon, Lilith Prexeva, Maldita Hammer, Mercedez Vulcão, Thelores e Xaniqua Laquisha. A adaptação do texto é assinada por João Mostazo, que soube preservar a essência poética e trágica de Shakespeare, ao mesmo tempo que celebra a desconstrução estética da drag.
Shakespeare e drag: uma união potente
A montagem da Cia. Extemporânea traz elementos da dramaturgia clássica shakespeariana para o universo contemporâneo da arte drag, sem descaracterizar nenhuma das duas linguagens. A proposta, segundo a diretora Ines Bushatsky, é apresentar a “drag total”, indo além do humor e explorando o potencial trágico dessa forma de arte. “O espetáculo vai do performático ao dramático dentro de uma mesma cena, revelando a drag em sua plenitude e intensidade emocional”, afirma Ines.
Mercedez Vulcão, uma das protagonistas, enfatiza que a drag sempre esteve presente nos palcos teatrais, especialmente nas origens do teatro ocidental, onde homens interpretavam papéis femininos. “Historicamente, a arte drag foi estigmatizada por questões religiosas e patriarcais. Hoje, colocá-la no centro de uma obra shakespeariana é um resgate de um espaço que sempre foi nosso”, afirma Mercedez.
Essa reconexão com a história do teatro é evidenciada por algumas teorias que sugerem que o próprio Shakespeare teria cunhado o termo “drag” em suas anotações, como uma abreviação de “dressed resembling a girl” (vestido como uma garota). Embora o termo tenha evoluído ao longo dos séculos, o espetáculo de Rei Lear mostra que a arte drag continua a tensionar e expandir as fronteiras de gênero e performance.
Um processo de criação colaborativo e enriquecedor
O elenco da montagem ressalta a importância da convivência em um ambiente criativo fora do circuito tradicional das baladas e festas drag. Ginger Moon destaca que, embora a drag nunca tenha deixado os palcos, sua presença em espaços teatrais mais tradicionais ainda é rara. “Ensaiar com outras drags foi um processo enriquecedor e transformador. Muitas vezes, nossa arte é solitária, pois cuidamos de tudo sozinhas – do figurino à maquiagem, e agora, poder compartilhar essa experiência foi incrível”, comenta Ginger.
A montagem busca ainda valorizar a diversidade de expressões dentro do universo drag. “Não existe uma única forma de fazer drag, e nosso espetáculo reflete isso. Cada artista traz uma estética única, criando um mosaico rico e multifacetado”, acrescenta a diretora Ines.
A trama de Rei Lear e sua releitura drag
A adaptação mantém a essência da tragédia shakespeariana: Lear, rei da Bretanha, decide dividir seu reino entre suas três filhas – Goneril, Regan e Cordelia – com base em quem demonstra maior amor por ele. Cordelia, a única que o ama verdadeiramente, se recusa a participar do jogo, resultando em sua expulsão. Enquanto as duas irmãs restantes lutam pelo poder, Lear cai em uma espiral de loucura, arrependendo-se por banir a filha que o amava.
Na adaptação, o universo de Lear é traduzido para o mundo das drags. A figura do rei é transformada em uma “mama drag”, e o conflito entre suas filhas adquire contornos ainda mais exacerbados. As disputas de poder, que na obra original já são intensas, encontram uma nova forma de expressão no contexto da estética drag, com figurinos exuberantes e performances carregadas de dramaticidade.
Um dos pontos centrais da montagem é a abordagem da personagem Cordelia, que se recusa a jogar o jogo de poder estabelecido por seu pai, provocando uma revolução ética e política na trama. Para o dramaturgo João Mostazo, a recusa de Cordelia é também uma recusa em sustentar as mentiras que sustentam aquele mundo. “Essa atitude de Cordelia ecoa profundamente na arte drag, que, por sua natureza, desafia as normas impostas pela sociedade”, afirma Mostazo.
A peça utiliza recursos como o lipsync – tradicional nas performances drag – para intensificar momentos de emoção e desconstrução de identidade. A cena em que Lear cai na loucura, por exemplo, é representada como uma performance de boate, com o rei dublando e dançando, questionando sua própria identidade. “É como se Lear se perguntasse: ‘Quem sou eu?’, enquanto se perde entre a realidade e a performance”, diz Ines Bushatsky.
Este projeto foi contemplado pela 18ª Edição do Prêmio Zé Renato – Secretaria Municipal de Cultura
SERVIÇO
Rei Lear, da Cia. Extemporânea
Temporada: 31 de outubro a 3 de novembro
Quinta a sábado às 20h30; e domingo às 19h
Teatro Arthur Azevedo
Av. Paes de Barros, 955
Ingressos: Gratuitos
Classificação: 14 anos
Duração: 120 minutos
Acessibilidade: teatro acessível a cadeirantes e pessoas com mobilidade reduzida